ORIENTAÇÃO E ACONSELHAMENTO PSICOLÓGICO ON LINE
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
Conectividade, compartilhamento e implicações subjetivas
Conectividade, compartilhamento e implicações subjetivas
Novas formas de tecnologia nos impõem questões inéditas sobre a maneira como nos relacionamos com produções culturais, empresas e instâncias de poder
Pedro L. Ribeiro de Santi
Vivemos uma situação ambivalente: graças aos novos recursos tecnológicos de comunicação são criados novos e interessantes recursos psicológicos, mas, ao mesmo tempo, enfrentamos a perda de condições que costumamos tomar como fundamentais para a constituição subjetiva. Essa situação se relaciona a nossa experiência atual com a conectividade. A partir da lógica do compartilhamento (característica do Facebook, mas não só dele), da forma como nos relacionamos com as redes sociais e armazenamos dados em meios virtuais, é possível derivar para mecanismos psíquicos (relativos a confi ança, dependência e perda da experiência de interioridade privada) envolvidos nesses processos.
Desenvolvo cada uma das partes deste artigo a partir de três filmes de curta-metragem produzidos pela empresa de mobile marketing Pontomobi e pela agência de publicidade JWT, lançados em junho de 2013, para mapear o comportamento do consumidor móvel no Brasil.
1. As molduras ignoradas dentro das quais nos movemos
A era do desapego, um vídeo com 7:19 min., apresentava a marca da “liberdade” proporcionada pela possibilidade de guardar informações (fotos, textos, músicas etc.) num ambiente on-line, uma nuvem que dispensa um disco de armazenamento à mão. De qualquer lugar e com qualquer dispositivo é possível acessar as informações. A dimensão libertária é evidente: virtualmente, todos os seus livros, arquivos e informações oferecidas pela mídia deixam de ocupar espaço físico, tornando-se disponíveis em qualquer lugar ou momento. Aliás, não só os seus arquivos, mas os acervos de bibliotecas e museus de todo o mundo. Não é necessário sequer que você leve sua plataforma (notebook, tablet, smartphone e outros tantos aparelhos). A imagem arcaica que me ocorre é a daqueles casos em que pessoas esqueciam a única cópia de sua tese ou do original de seu livro num táxi e os perdiam irremediavelmente. Hoje, essas experiências aterrorizantes podem estar superadas.
Mas a liberdade celebrada pelo vídeo ignora – e torna gritante – a dimensão alienante de tudo isso. Em nenhum momento se fala da absoluta dependência e confiança nas condições de possibilidade do processo: dispositivos de acesso e aplicativos atualizados disponíveis, provedores de acesso e armazenamento, sem nem mencionar a eletricidade para carregar as baterias (afinal, apagões existem). Tudo leva a crer que manter dados na nuvem seja tecnicamente mais seguro que fazê-lo num disco rígido ou pendrive, já que estes últimos podem queimar ou travar, afinal. Mas quem é o fiador da disponibilidade da nuvem ou da garantia de privacidade sobre suas informações?
Quero aqui evidenciar que, sobre a experiência imediata de liberdade, cria-se uma condição de dependência absoluta e renúncia à privacidade, sem que isto seja sequer claramente consciente. Ao depositarmos nossas informações, delegamos a empresas particulares – com seus interesses comerciais – nosso patrimônio cultural e passamos a depender delas como seus guardiães.
Ocasionalmente, a estrutura invisível subjacente ao nosso uso cotidiano da internet se evidencia. Há poucos meses, tornou-se público um processo de espionagem sistemática do Sistema Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos. Parte das análises apontavam surpresa e ofensa; outra parte se perguntava se as pessoas não sabiam ou imaginavam que a movimentação telefônica pudesse ser controlada como medida estatal de segurança ou instrumento de marketing.
No Brasil, recorrentemente recebemos notícias de que cadastros pessoais feitos para determinadas instituições (inclusive governamentais) tornam-se disponíveis para uso mercadológico.
A ilusão de liberdade e privacidade na movimentação pela internet fica ainda mais próxima no dia a dia das redes sociais. Cada um de nós recebe a cada instante publicidade específica relativa aos nossos hábitos de consumo, aos sites pelos quais passeamos ou pesquisas que fazemos. Desde a aquisição do Orkut pelo Google, gradativamente temos tomado consciência de que nossa movimentação pela rede se torna “cadastro de consumidor”. De alguma maneira, esse uso mercadológico de nossa vida virtual nos causa menor desconforto que o monitoramento governamental. Isso parece um tanto estranho, uma vez que, em última instância, os governos devem mais satisfações à sociedade que empresas particulares.
Talvez tomemos o poder público como inimigo, por estar associado à lei e aos nossos deveres, enquanto nos rendemos com relação às ações de marketing, tornando-as cúmplices em nosso anseio por acesso ao consumo e prazer. De toda maneira, quando a estrutura da moldura que nos enquadra se torna evidente, reagimos e protestamos, mas basta que ela desapareça para que nos reacomodemos.
Em contrapartida, a consciência do monitoramento nos entrega a uma experiência paranoica, de persecutoriedade. É como se entrássemos em contato com o Big Brother de 1984, de George Orwell. A percepção de um poder invisível que irá nos usar em função de seus interesses, sem que alguma instância de controle intermedeie essa relação, nos deixa entregues a um estado infantil de desamparo e terror.
Temos visto de pouco tempo para cá um novo movimento. A revelação da falta de privacidade na rede passa a ser assumida. O Google comunicou aos usuários de seu e-mail que não pode garantir sua privacidade; e o governo americano, que não doura mais a pílula, assume que seguirá espionando em nome da segurança do país, e, alega, dos próprios espionados. Como essa estratégia ainda é recente, não sabemos se ela irá “colar”. Por vezes, o limite do aceitável vai sendo empurrado sem que nos demos conta. A despeito de essa estratégia tentar ‘naturalizar” o monitoramento, aqueles que tornam a estrutura visível e denunciam os dispositivos de monitoramento continuam pesadamente perseguidos e punidos como traidores.
A crença num mito da liberdade só pode ser mantida se fingimos não saber aquilo que sabemos, numa defesa subjetiva que a psicanálise chama de recusa, ou “eu sei, mas mesmo assim”. Talvez tenhamos encontrado um novo “discurso da servidão voluntária” (para usar a expressão de Étienne de La Boétie, no século 16).
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