ORIENTAÇÃO E ACONSELHAMENTO PSICOLÓGICO ON LINE
quarta-feira, 9 de abril de 2014
Contando cadáveres
Contando cadáveres
Chamamos de violência o mal-estar que tomou conta do país; remetemos nossa impotência ao fato de que alguém – o governo, a polícia, o outro – não está fazendo o que deve
Gonçalo Viana
Pelo menos oito pessoas morreram em “acidentes” ocasionados pela ação da polícia, desde o início das manifestações populares no Brasil. Em março de 2013 um cinegrafista morreu depois de ser atingindo por um rojão disparado por um manifestante, e neste caso suspeita-se da ação de partidos organizados, que estariam incitando a violência. A discussão imediatamente se desloca para a diferença entre a violência policial, justa e legítima aos olhos da lei, e a violência de quadrilhas políticas, que suprime e transgride as “regras do jogo” no Estado democrático de direito. E os argumentos se acirram quando lembramos os milhares de mortos invisíveis, decorrentes do estado de violência generalizada, particularmente contra os excluídos do “jogo da lei e dos direitos”.
A perigosa economia dos cadáveres nos leva ao raciocínio de que podemos contabilizar perdas e, desta forma, agir pela regra ordinária de minimizar prejuízos. Esta tem sido a retórica da guerra limpa, do fogo amigo, do “infeliz acidente”, que não consegue fazer justiça ao fato maior de que cada morte é única, e aí está sua tragédia irrecuperável. Entre as mortes da polícia e as mortes políticas não se trata de pensar se estas duas séries são convergentes ou divergentes, nem de dispô--las em uma única linha histórica representada pelo avanço da violência no país. Temos de parar de contar cadáveres e nos ocupar com o nome de nossos mortos.
Violência é o nome que damos mais facilmente para o mal-estar que tomou conta de nosso país. E uma vez assim nomeado o mal-estar parece diminuir. Consolamo-nos com a falsa sensação de que sabemos o que fazer. Remetemos nossa impotência ao fato de que alguém – o Estado, o governo, a polícia, o Outro – não está fazendo o que devia. E assim prospera a economia da culpa e da vingança. Dizer, simplesmente, que a violência é um mal e que quem a pratica deve ser punido é uma forma de esquecer rapidamente o nome dos que se foram, consagrando uma forma de luto patológico. Um luto que não volta em sintomas depressivos, mas em atos impulsivos que a psicanálise chama de acting out, ou também de enactments (encenações).
Chegamos assim a um dos impasses mais cruciais da filosofia política, mas também ao núcleo do problema colocado pelo conceito freudiano de pulsão de morte. Será mesmo que só podemos pensar em duas formas de violência? – a do Estado que a monopoliza e a do crime que a usa ilegalmente? Autores como Walter Benjamin e Slavoj Zizek, na esteira do antigo tema do direito dos povos a se rebelar contra a injustiça de seus governantes, falam em “violência divina”. Esta não é nem a violência que institui a lei, nem a que transgride a lei, mas a que está além do princípio do prazer e das séries contábeis. A violência divina eleva o nome singular de cada um à dignidade de uma tragédia universal. Isso nos ajudaria tanto a transformar a realidade, que ainda não conseguimos nomear perfeitamente, quanto a nos reconciliar com estes que se foram, e ainda assim nos acompanham.
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