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quarta-feira, 2 de maio de 2012
Obcecados pelo bisturi
Obcecados pelo bisturi
Em todo o mundo, milhões de pessoas sofrem com a obsessão de serem fisicamente deformadas. Médicos ainda discutem o melhor tratamento
por Hubertus Breuer
"Extreme Makeover" (Transformação Extrema) é o título de um programa de televisão da rede americana ABC que promete aos espectadores algo com que a maioria deles sonha: a aparência mais perfeita possível. Diante das câmaras, pessoas comuns entregam-se, esperançosas, ao bisturi de um cirurgião plástico: desaparecem as protuberâncias nasais, a pele flácida se estica novamente, as pálpebras caídas se levantam, os seios incham e os dentes voltam a reluzir.
Estúpido? A obsessão com o próprio corpo pode assumir formas ainda mais estranhas. A artista francesa Orlan, por exemplo, modela seu rosto desde 1990 mediante dezenas de operações que tomam como modelos diversas figuras da pintura ocidental. "Ofereci meu corpo à arte", explica. Outros chegam ao extremo de mutilar o próprio corpo, amputando uma perna ou um braço, persuadidos de que estas partes "não estão com um bom aspecto".
As pessoas que acreditam, de forma obsessiva, ter uma aparência física imperfeita sofrem de uma doença: o transtorno dismórfico corporal, historicamente conhecido como dismorfofobia, ou medo da feiúra. O psiquiatra italiano Enrico Morselli formulou o conceito no final do século 19, após estudar o quadro clínico de dezenas de pacientes. Cintura muito grossa, seios muito pequenos, barriga saliente, pescoço largo, nariz adunco, queixo duplo, gordura excessiva na cintura ou um rosto sulcado de rugas: tudo isto pode abalar profundamente a auto-estima de certos homens e mulheres. Tais pessoas vivem se olhando no espelho ou, ao contrário, evitam-no, aterrorizadas com a possibilidade de entrever o próprio rosto. Temem o convívio social, pois em público tornam-se ainda mais dolorosamente conscientes da própria deformidade imaginária. A dismorfofobia faz parte dos transtornos obsessivos, que determinam em grande parte o pensamento e a conduta.
Evidentemente, desejar uma operação de cirurgia estética não é em si um sinal de psicose. As pessoas que se submetem a um lifting ou lipoaspiração costumam ficar satisfeitas após a intervenção. Outras, porém, procuram continuamente o bisturi para corrigir defeitos imaginários, sem obter resultados que considerem satisfatórios. É o caso do cantor Michael Jackson, que parece considerar seu rosto um projeto eternamente inacabado. Ou o da atriz de filmes pornográficos Lolo Ferrari, falecida há quatro anos, que em 22 ocasiões passou por cirurgias para corrigir as formas de seu corpo: cinco vezes nos seios, seis no nariz, três nos olhos e outras tantas no rosto e nos lábios. Seu corpo era um campo de batalha e o bisturi uma forma discutível de psicoterapia.
A adolescência, fase de risco
A parte do corpo que mais aflige quem sofre dessa obsessão é a cabeça, em particular o rosto, seguida pelos cabelos, pele e olhos. Para as mulheres é preciso mencionar ainda os seios e, para os homens, o pênis. Em geral, a dismorfofobia se manifesta na adolescência ou na primeira idade adulta, períodos em que a auto-estima não está plenamente desenvolvida. A idéia de que são pessoas deformadas domina a tal ponto seu pensamento que não conseguem levar um vida normal; assim, não é de surpreender que os Hässlichkeitskümmerer ("obcecados pela feiúra"), como os denominavam os psiquiatras alemães dos anos 30, padeçam também muitas vezes de fobias sociais, depressões e neuroses obsessivas. Alguns chegam a se suicidar.
Katherine Phillips - psiquiatra da Universidade Brown, em Rhode Island, EUA, e autora de dois livros sobre o tema - explica: "A pior coisa para essas pessoas é que elas quase sempre acabam isoladas. Imagine o que seria sua vida se você estivesse convencido de que tem o aspecto de um Frankenstein". Não é raro que o paciente atribua a suposta culpa a outros: em maio de 1999, um jovem turco de 26 anos entrou em uma clínica de otorrinolaringologia em Ludwigshafen, Alemanha, e disparou contra o médico, matando-o. O jovem estava descontente com seu suposto nariz adunco, ao qual atribuía todos os seus fracassos na vida.
Não há unanimidade entre os especialistas sobre a incidência da doença. Nos Estados Unidos haveria, segundo Katherine Phillips, uma verdadeira epidemia: o problema atingiria 2% da população, ou seja, mais de cinco milhões de pessoas. Mas David Sarwer, psiquiatra do hospital da Universidade da Pennsylvania, entrevistou, há alguns anos, uma série de pessoas que haviam se submetido a algum tipo de cirurgia estética. Pouquíssimas apresentavam transtornos psíquicos, isto é, algo em torno de 2% a 7% dos pacientes. Thomas Schläfer, professor na Universidade de Berna, na Suíça, e na Universidade John Hopkins, nos EUA, endossa a mesma opinião: "A dismorfofobia é uma doença grave mas, felizmente, rara"
As suas causas neuropsicológicas permanecem obscuras. Os estudos de Thilo Deckersbach, da Harvard School, nos EUA, e de outros pesquisadores mostram que os pacientes que sofrem de dismorfofobia padecem também de dificuldades de aprendizado e de problemas de memória. Para verificar esta hipótese, Deckersbach pediu que os participantes do teste reproduzissem de memória uma figura geométrica que lhes fora mostrada anteriormente. Aqueles que sofriam de dismorfofobia tiveram mais dificuldades para reproduzir a figura que as pessoas sãs do grupo de controle. "É possível que isto dependa da excessiva atenção dada aos detalhes pelos dismorfofóbicos, em detrimento da impressão do conjunto", conjectura Deckersbach.
Mas o psiquiatra não arrisca explicações neurobiológicas baseadas nestes testes. Ele recorda que pacientes com outros tipos de transtornos obsessivos enfrentam problemas de memória similares. No caso destes pacientes, os métodos de imageamento cerebral parecem indicar a alteração de determinados mecanismos neurocerebrais do córtex pré-frontal, região em que estão localizadas as funções cognitivas superiores.
Thomas Schläpfer considera plausível a seguinte explicação: nos pacientes com transtornos obsessivos, podemos observar uma hiperatividade no córtex pré-frontal que os impele a procedimentos de controle exagerados. Vejamos um exemplo: às vezes, após sair de casa, ocorre-nos retornar para verificar se realmente desligamos o fogão ou o ferro de passar. Acontece com quase todo mundo. Alguns pacientes com transtornos obsessivos, porém, retornam muitas vezes pelo mesmo motivo.
Um comportamento deste tipo pode ser eliminado, porém apenas por um breve período, agindo-se diretamente sobre processos alterados no córtex pré-frontal através da estimulação magnética transcraniana (TMS, na sigla em inglês). O método consiste em atingir o cérebro de forma dirigida, não invasiva, através de pulsos magnéticos sobre o crânio, os quais, atravessando os tecidos, geram uma fraca corrente elétrica capaz de provocar alterações na atividade das células nervosas, reforçando ou inibindo processos neuronais.
O desafio da cura
Este método se revelou imediatamente promissor para uma paciente que, antes de conseguir atravessar uma porta, precisava efetuar complicados rituais. Depois do tratamento, pela primeira vez, ela foi capaz de passar sem problemas de um recinto a outro. Mas, após uma semana os sintomas retornaram. "De fato, a TMS não pode ser utilizada como cura permanente; todavia, ela pode dar indicações sobre as bases neuronais dos transtornos obsessivos", explica Schläpfer.
No que diz respeito às estratégias de cura a longo prazo, os médicos não têm muitas opções. Prescrevem antidepressivos - que aumentam o nível de serotonina no cérebro e melhoram o estado psíquico - ou indicam uma psicoterapia, que pode atenuar os sintomas, embora raramente os elimine.
Em casos excepcionais, a crença das pessoas que sofrem do transtorno de que são fisicamente desfiguradas as leva a considerar partes inteiras de seu corpo como postiças. A solução desejada é a amputação. Este desejo coloca os médicos diante de um grande dilema ético, ainda que pareça extremamente discutível a pertinência terapêutica da amputação de um membro são. Apesar disto, Robert Smith, um cirurgião britânico, deu este passo irreversível em 1997, amputando a perna de dois pacientes, um inglês e um alemão. Com apenas um perna, eles puderam se sentir homens plenos. Cortados foram também os honorários de Smith: sua clínica em Falkirk, na Escócia, foi proibida de realizar qualquer tipo de operação. O médico, porém, não concorda com a decisão: "Não tenho dúvida de que fiz o melhor para os pacientes".
Resta esperar que os casos graves desta insólita obsessão do corpo possam um dia ser curados com terapias e métodos menos radicais
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