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quarta-feira, 24 de agosto de 2016
Vidas em estado de regime
Vidas em estado de regime
O lugar da pessoa no universo é diretamente avaliado em função da gramatura de seu corpo; o olhar social para a diferença é “gozosamente” punitivo
Depois de anos dedicados à arte da comilança farta, continuada e copiosa e após décadas entre a kantiana sociedade da mesa e o “in vino veritas, in aqua sanitas”, cheguei finalmente ao veredito médico legal: “Christian, você precisa emagrecer”. A sentença caiu como um raio. Lembrei-me de meus antigos companheiros de viagem, cigarros e charutos, que já tinham ficado pelo caminho. Lembrei-me de meu amigo Zé Luiz: “A vida tem duas partes, na primeira entram coisas e pessoas, na segunda só saem”. Tendo padecido de vergonhosa magreza em minha juventude, jamais experimentei qualquer dificuldade com os quilos que foram chegando. Tendo lido Foucault, cultivei uma atitude benevolamente crítica com relação ao imperativo higiênico e dietético que domina a nossa moral sexual civilizada. Acompanhei como a lei do corpo dócil e administrado, em luta permanente com a polícia das calorias, trazia infelicidade crônica, particularmente entre as mulheres. Em síntese: mais uma vítima da biopolítica.
Seguindo recomendações expressas, com ordem e método, o processo, ainda que doloroso, rapidamente levou a um resultado razoável. Chegamos a um rápido armistício com este procurador legal do supereu: a balança. Se o superego freudiano dizia, com Dostoievski, crime e castigo, seu sucessor lacaniano vocifera: “Creme e castigo. Goza! Mas pelo menos não coma as gorduras que você vê”.
Da aventura sobrou uma constatação dramática. Há vidas que se passam inteiramente em estado de regime. A conversa é infinita: métodos, casos, variações milimétricas, teorias e escolas de pensamento. O lugar da pessoa no universo é claro e diretamente avaliado em função da gramatura de seu corpo. Seu sucesso e seu fracasso, seu destino e sua história, tudo pode ser contado do ponto de vista da luta contra este pedaço de matéria móvel e superficialmente dotado de imagem. Uma luta perdida, todos sabemos. Onde estão os críticos desta opressão massiva que impomos a nós mesmos? Quem se levantará contra o caráter obsceno desta moral feita de autocontrole, saúde e bem-estar? Já que a obesidade é um problema social, todas as curas ganham força de lei e todos os poderes opressivos se autojustificam. Descobri que isso é alimentado (com o perdão da palavra) por um sadismo impiedoso e impune praticado à luz do dia. Reconsiderei o sentido de certos comentários, pontuados por olhares de comiseração e recomendações circunspectas acerca de meu aspecto crescentemente dismórfico. Todos estavam preocupados com minha saúde, é claro. Só que não.
Vinte e cinco quilos depois, nenhuma observação. Poucos elogios, em geral artificialmente incitados. De repente volta aquele mesmo tom de preocupação crispada: estaria você doente? Resultado: o olhar social para a diferença é gozosamente punitivo. Ele instrumentaliza a lei instituída para acrescentar uma satisfação a mais. Em nome desta lei exerce a crítica vigilante sobre os outros e seus masoquismos. A interiorização deste processo traz muito sofrimento. Sofrimento que é invisível e normalizado. Como se a vida só pudesse ser vivida com ele.
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