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quarta-feira, 26 de junho de 2013
Crimes da palavra
Crimes da palavra
A voz coletiva julga e antecipa castigos, sem individualizar responsabilidades; no filme A caça o problema está no que os adultos fazem com o que é dito por uma criança
Christian Ingo Lenz Dunker
“Existe muita maldade no mundo, mas se nós ficamos juntos ela diminui.” Com essa frase o pai de uma menina de 5 anos tenta consolar a filha. Ela tinha dito à supervisora da creche onde estuda que seu professor havia lhe mostrado “sua vara em pé”. O pai é amigo de infância do acusado, que vive solitário em sua casa, enquanto luta para ter a guarda do filho após uma separação turbulenta. A pequena vila na Suécia, onde se passa o filme A caça, de Thomas Vinterberg (2012), reage violentamente à denúncia da menina oprimindo, atacando e vilipendiando o jovem professor. Na dúvida, é melhor fazer alguma coisa – e o que há para fazer é vingar-se. A violência contra o mal é também uma forma de “ficar junto” e de magicamente “diminuir” a maldade. É assim que a comunhão integrativa que nos une contra um inimigo, interno ou externo, promove a catarse como purificação.
As crianças dizem a verdade, afirma a escola, sem se perguntar onde e como exatamente o fazem. O filme mostra quão perniciosa pode ser a verdade quando a reduzimos ao fervor judicialista que se apossa de nós diante do pressentimento de injustiça. “Existe muita maldade no mundo, mas às vezes , se nós ficamos juntos ela aumenta... mais ainda.” E se a vingança pode reparar imaginariamente o dano, ainda não sabemos como curar os prejuízos de uma falsa denúncia pública. O filósofo Giorgio Agamben apresentou, em 1995, a figura do homo sacer para falar daqueles que podem ser mortos impunemente, seja em campos de concentração ou na cracolândia. Ainda não descobrimos uma figura equivalente para falar dos crimes impunes da palavra, mais aquém da difamação, da calúnia e da injúria. Como seria possível tipificar um crime que se baseia em incerteza de intenções, indeterminação da autoria e na inconsequência dos efeitos? A voz coletiva julga, segrega, antecipa castigos pressupondo a culpa, sem individualizar responsabilidades. No filme de Vintenberg o crime não está na palavra da criança, mas no que o adulto faz com ela: usa-a para propagar o seu próprio mal, impronunciável até então.
Há hipóteses que não alteram quem as enuncia nem a situação na qual ela é formulada. Mas há outras teses carregadas de um estranho e incontrolável efeito transformador. Entre dois amantes um deles pergunta: “E se você estiver me traindo?”. Falsa ou verdadeira, a mera enunciação da possibilidade muda completamente a natureza do laço entre os envolvidos. “Você está usando drogas?”, questionam os pais do adolescente. “De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?” (Essa pergunta, aliás, jamais deveria ser feita a qualquer criança.)
Há uma correlação entre a emergência de uma cultura da celebridade e a expansão dos crimes da palavra. A construção “social” de avaliações, juízos e demais impressões derrogatórias é uma arte ascendente no mundo corporativo. Paul Valéry (1871-1945) falava das profissões delirantes como aquelas atividades cujo sucesso depende quase exclusivamente da opinião que os outros têm sobre você, por exemplo, o artista. Ocorre que numa cultura da denúncia quase todas as profissões tornaram-se delirantes.
A incerteza promovida por uma denúncia é real – tão real quanto a devastação que ela causa na vítima da lógica vitimista. É como se diante da impotência gerada por uma dúvida nos ocupássemos antes em “ficar juntos” do que admitir a indeterminação real que atravessa nossas vidas. É preciso considerar outra forma de catarse, aquela na qual a dignidade de um caso pode derrotar a massa que imagina criar bondade só porque está unida, uma catarse que não seria purificadora e excludente do mal, mas desintegrativa em relação à própria “bondade” do grupo na qual emerge. Uma catarse que seria a cura para os crimes da palavra.
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